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<title>O Uraguai</title>
<author>Basílio da Gama</author>
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<p>Adaptado por Adiel Mittmann.</p>
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<body>
<div type="poem" n="1">
<head>CANTO PRIMEIRO</head>
<lg n="1">
<l n="1">Fumam ainda nas desertas praias</l>
<l n="2">Lagos de sangue tépidos e impuros</l>
<l n="3">Em que ondeiam cadáveres despidos,</l>
<l n="4">Pasto de corvos. Dura inda nos vales</l>
<l n="5">O rouco som da irada artilheria.</l>
<l n="6">MUSA, honremos o Herói que o povo rude</l>
<l n="7">Subjugou do Uraguai, e no seu sangue</l>
<l n="8">Dos decretos reais lavou a afronta.</l>
<l n="9">Ai tanto custas, ambição de império!</l>
<l n="10">E Vós, por quem o Maranhão pendura [1]</l>
<l n="11">Rotas cadeias e grilhões pesados, [2]</l>
<l n="12">Herói e irmão de heróis, saudosa e triste [3]</l>
<l n="13">Se ao longe a vossa América vos lembra,</l>
<l n="14">Protegei os meus versos. Possa entanto</l>
<l n="15">Acostumar ao vôo as novas asas</l>
<l n="16">Em que um dia vos leve. Desta sorte</l>
<l n="17">Medrosa deixa o ninho a vez primeira</l>
<l n="18">Águia, que depois foge à humilde terra</l>
<l n="19">E vai ver de mais perto no ar vazio</l>
<l n="20">O espaço azul, onde não chega o raio.</l>
<l n="21">Já dos olhos o véu tinha rasgado</l>
<l n="22">A enganada Madri, e ao Novo Mundo [4]</l>
<l n="23">Da vontade do Rei núncio severo</l>
<l n="24">Aportava Catâneo: e ao grande Andrade [5]</l>
<l n="25">Avisa que tem prontos os socorros</l>
<l n="26">E que em breve saía ao campo armado.</l>
<l n="27">Não podia marchar por um deserto</l>
<l n="28">O nosso General, sem que chegassem</l>
<l n="29">As conduções, que há muito tempo espera.</l>
<l n="30">Já por dilatadíssimos caminhos</l>
<l n="31">Tinha mandado de remotas partes</l>
<l n="32">Conduzir os petrechos para a guerra.</l>
<l n="33">Mas entretanto cuidadoso e triste</l>
<l n="34">Muitas cousas a um tempo revolvia</l>
<l n="35">No inquieto agitado pensamento.</l>
<l n="36">Quando pelos seus guardas conduzido</l>
<l n="37">Um índio, com insígnias de correio,</l>
<l n="38">Com cerimônia estranha lhe apresenta</l>
<l n="39">Humilde as cartas, que primeiro toca</l>
<l n="40">Levemente na boca e na cabeça.</l>
<l n="41">Conhece a fiel mão e já descansa</l>
<l n="42">O ilustre General, que viu, rasgando,</l>
<l n="43">Que na cera encarnada impressa vinha</l>
<l n="44">A águia real do generoso Almeida. [6]</l>
<l n="45">Diz-lhe que está vizinho e traz consigo,</l>
<l n="46">Prontos para o caminho e para a guerra,</l>
<l n="47">Os fogosos cavalos e os robustos</l>
<l n="48">E tardos bois que hão de sofrer o jugo</l>
<l n="49">No pesado exercício das carretas.</l>
<l n="50">Não tem mais que esperar, e sem demora</l>
<l n="51">Responde ao castelhano que partia,</l>
<l n="52">E lhe determinou lugar e tempo [7]</l>
<l n="53">Para unir os socorros ao seu campo.</l>
<l n="54">Juntos enfim, e um corpo do outro à vista,</l>
<l n="55">Fez desfilar as tropas pelo plano,</l>
<l n="56">Por que visse o espanhol em campo largo</l>
<l n="57">A nobre gente e as armas que trazia.</l>
<l n="58">Vão passando as esquadras: ele entanto</l>
<l n="59">Tudo nota de parte e tudo observa</l>
<l n="60">Encostado ao bastão. Ligeira e leve</l>
<l n="61">Passou primeiro a guarda, que na guerra</l>
<l n="62">É primeira a marchar, e que a seu cargo</l>
<l n="63">Tem descobrir e segurar o campo.</l>
<l n="64">Depois desta se segue a que descreve</l>
<l n="65">E dá ao campo a ordem e a figura,</l>
<l n="66">E transporta e edifica em um momento</l>
<l n="67">O leve teto e as movediças casas,</l>
<l n="68">E a praça e as ruas da cidade errante.</l>
<l n="69">Atrás dos forçosíssimos cavalos</l>
<l n="70">Quentes sonoros eixos vão gemendo</l>
<l n="71">Co’ peso da funesta artilheria.</l>
<l n="72">Vinha logo de guardas rodeado</l>
<l n="73">- Fontes de crimes - militar tesouro,</l>
<l n="74">Por quem deixa no rego o curvo arado</l>
<l n="75">O lavrador, que não conhece a glória;</l>
<l n="76">E vendendo a vil preço o sangue e a vida</l>
<l n="77">Move, e nem sabe por que move, a guerra.</l>
<l n="78">Intrépidos e imóveis nas fileiras,</l>
<l n="79">Com grandes passos, firme a testa e os olhos</l>
<l n="80">Vão marchando os mitrados granadeiros,</l>
<l n="81">Sobre ligeiras rodas conduzindo</l>
<l n="82">Novas espécies de fundidos bronzes [8]</l>
<l n="83">Que amiúdam, de prontas mãos servidos,</l>
<l n="84">E multiplicam pelo campo a morte.</l>
<l n="85">Que é este, Catâneo perguntava,</l>
<l n="86">Das brancas plumas e de azul e branco</l>
<l n="87">Vestido, e de galões coberto e cheio,</l>
<l n="88">Que traz a rica cruz no largo peito?</l>
<l n="89">Geraldo, que os conhece, lhe responde:</l>
<l n="90">É o ilustre Meneses, mais que todos [9]</l>
<l n="91">Forte de braço e forte de conselho.</l>
<l n="92">Toda essa guerreira infanteria,</l>
<l n="93">A flor da mocidade e da nobreza</l>
<l n="94">Como ele azul e branco e ouro vestem.</l>
<l n="95">Quem é, continuava o castelhano,</l>
<l n="96">Aquele velho vigoroso e forte,</l>
<l n="97">Que de branco e amarelo e de ouro ornado</l>
<l n="98">Vem os seus artilheiros conduzindo?</l>
<l n="99">Vês o grande alpoim. Este o primeiro [10]</l>
<l n="100">Ensinou entre nós por que caminho</l>
<l n="101">Se eleva aos céus a curva e grave bomba</l>
<l n="102">Prenhe de fogo; e com que força do alto</l>
<l n="103">Abate os tetos da cidade e lança</l>
<l n="104">Do roto seio envolta em fumo a morte.</l>
<l n="105">Seguiam juntos o paterno exemplo</l>
<l n="106">Dignos do grande pai ambos os filhos.</l>
<l n="107">Justos céus! E é forçoso, ilustre Vasco, [11]</l>
<l n="108">Que te preparem as soberbas ondas,</l>
<l n="109">Longe de mim, a morte e a sepultura?</l>
<l n="110">Ninfas do amor, que vistes, se é que vistes,</l>
<l n="111">O rosto esmorecido e os frios braços,</l>
<l n="112">Sobre os olhos soltai as verdes tranças.</l>
<l n="113">Triste objeto de mágoa e de saudade,</l>
<l n="114">Como em meu coração, vive em meus versos.</l>
<l n="115">Com os teus encarnados granadeiros</l>
<l n="116">Também te viu naquele dia o campo,</l>
<l n="117">Famoso Mascarenhas, tu, que agora [12]</l>
<l n="118">Em doce paz, nos menos firmes anos,</l>
<l n="119">Igualmente servindo ao rei e à pátria,</l>
<l n="120">Ditas as leis ao público sossego,</l>
<l n="121">Honra de Toga e glória do Senado.</l>
<l n="122">Nem tu, Castro fortíssimo, escolheste [13]</l>
<l n="123">O descanso da pátria: o campo e as armas</l>
<l n="124">Fizeram renovar no ínclito peito</l>
<l n="125">Todo o heróico valor dos teus passados.</l>
<l n="126">Os últimos que em campo se mostraram</l>
<l n="127">Foram fortes dragões de duros peitos,</l>
<l n="128">Prontos para dous gêneros de guerra,</l>
<l n="129">Que pelejam a pé sobre as montanhas,</l>
<l n="130">Quando o pede o terreno; e quando o pede</l>
<l n="131">Erguem nuvens de pó por todo o campo</l>
<l n="132">Co’ tropel dos magnânimos cavalos.</l>
<l n="133">Convida o General depois da mostra,</l>
<l n="134">Pago da militar guerreira imagem,</l>
<l n="135">Os seus e os espanhóis; e já recebe</l>
<l n="136">No pavilhão purpúreo, em largo giro,</l>
<l n="137">Os capitães a alegre e rica mesa.</l>
<l n="138">Desterram-se os cuidados, derramando</l>
<l n="139">Os vinhos europeus nas taças de ouro.</l>
<l n="140">Ao som da ebúrnea cítara sonora</l>
<l n="141">Arrebatado de furor divino</l>
<l n="142">Do seu herói, Matúsio celebrava</l>
<l n="143">Altas empresas dignas de memória.</l>
<l n="144">Honras futuras lhe promete, e canta</l>
<l n="145">Os seus brasões, e sobre o forte escudo</l>
<l n="146">Já de então lhe afigura e lhe descreve</l>
<l n="147">As pérolas e o título de Grande.</l>
<l n="148">Levantadas as mesas, entretinham</l>
<l n="149">O congresso de heróis discursos vários.</l>
<l n="150">Ali Catâneo ao General pedia</l>
<l n="151">Que do princípio lhe dissesse as causas</l>
<l n="152">Da nova guerra e do fatal tumulto.</l>
<l n="153">Se aos Padres seguem os rebeldes povos?</l>
<l n="154">Quem os governa em paz e na peleja?</l>
<l n="155">Que do premeditado oculto Império</l>
<l n="156">Vagamente na Europa se falava [14]</l>
<l n="157">Nos seus lugares cada qual imóvel</l>
<l n="158">Pende da sua boca: atende em roda</l>
<l n="159">Tudo em silêncio, e dá princípio Andrade:</l>
<l n="160">O nosso último rei e o rei de Espanha</l>
<l n="161">Determinaram, por cortar de um golpe,</l>
<l n="162">Como sabeis, neste ângulo da terra,</l>
<l n="163">As desordens de povos confinantes,</l>
<l n="164">Que mais certos sinais nos dividissem. [15]</l>
<l n="165">Tirando a linha de onde a estéril costa,</l>
<l n="166">E o cerro de Castilhos o mar lava</l>
<l n="167">Ao monte mais vizinho, e que as vertentes</l>
<l n="168">Os termos do domínio assinalassem.</l>
<l n="169">Vossa fica a Colônia, e ficam nossos</l>
<l n="170">Sete povos, que os Bárbaros habitam</l>
<l n="171">Naquela oriental vasta campina</l>
<l n="172">Que o fértil Uraguai discorre e banha.</l>
<l n="173">Quem podia esperar que uns índios rudes,</l>
<l n="174">Sem disciplina, sem valor, sem armas, [16]</l>
<l n="175">Se atravessassem no caminho aos nossos,</l>
<l n="176">E que lhes disputassem o terreno! [17]</l>
<l n="177">Enfim não lhes dei ordens para a guerra:</l>
<l n="178">Frustrada a expedição, enfim voltaram.</l>
<l n="179">Co’ vosso general me determino</l>
<l n="180">A entrar no campo juntos, em chegando</l>
<l n="181">A doce volta da estação das flores.</l>
<l n="182">Não sofrem tanto os índios atrevidos:</l>
<l n="183">Juntos um nosso forte entanto assaltam.</l>
<l n="184">E os padres os incitam e acompanham.</l>
<l n="185">Que, à sua discrição, só eles podem</l>
<l n="186">Aqui mover ou sossegar a guerra.</l>
<l n="187">Os índios que ficaram prisioneiros [18]</l>
<l n="188">Ainda os podeis ver neste meu campo.</l>
<l n="189">Deixados os quartéis, enfim partimos [19]</l>
<l n="190">Por diversas estradas, procurando</l>
<l n="191">Tomar no meio os rebelados povos.</l>
<l n="192">Por muitas léguas de áspero caminho,</l>
<l n="193">Por lagos, bosques, vales e montanhas,</l>
<l n="194">Chegamos onde nos impede o passo</l>
<l n="195">Arrebatado e caudaloso rio. [20]</l>
<l n="196">Por toda a oposta margem se descobre</l>
<l n="197">De bárbaros o número infinito</l>
<l n="198">Que ao longe nos insulta e nos espera.</l>
<l n="199">Preparo curvas balsas e pelotas, [21]</l>
<l n="200">E em uma parte de passar aceno,</l>
<l n="201">Enquanto em outra passo oculto as tropas.</l>
<l n="202">Quase tocava o fim da empresa, quando</l>
<l n="203">Do vosso general um mensageiro</l>
<l n="204">Me afirma que se havia retirado: [22]</l>
<l n="205">A disciplina militar dos índios</l>
<l n="206">Tinha esterilizado aqueles campos.</l>
<l n="207">Que eu também me retire, me aconselha,</l>
<l n="208">Até que o tempo mostre outro caminho.</l>
<l n="209">Irado, não o nego, lhe respondo:</l>
<l n="210">Que para trás não sei mover um passo.</l>
<l n="211">Venha quando puder, que eu firme o espero.</l>
<l n="212">Porém o rio e a forma do terreno [23]</l>
<l n="213">Nos faz não vista e nunca usada guerra.</l>
<l n="214">Sai furioso do seu seio, e toda</l>
<l n="215">Vai alagando com o desmedido</l>
<l n="216">Peso das águas a planície imensa.</l>
<l n="217">As tendas levantei, primeiro aos troncos, [24]</l>
<l n="218">Depois aos altos ramos: pouco a pouco</l>
<l n="219">Fomos tomar na região do vento</l>
<l n="220">A habitação aos leves passarinhos.</l>
<l n="221">Tece o emaranhadíssimo arvoredo</l>
<l n="222">Verdes, irregulares, e torcidas</l>
<l n="223">Ruas e praças, de uma e de outra banda</l>
<l n="224">Cruzadas de canoas. Tais podemos [25]</l>
<l n="225">Co’a mistura das luzes, e das sombras</l>
<l n="226">Ver por meio de um vidro transplantados</l>
<l n="227">Ao seio de Ádria os nobres edifícios,</l>
<l n="228">E os jardins, que produz outro elemento.</l>
<l n="229">E batidas do remo, e navegáveis</l>
<l n="230">As ruas da marítima Veneza.</l>
<l n="231">Duas vezes a lua prateada</l>
<l n="232">Curvou no céu sereno os alvos cornos,</l>
<l n="233">E inda continuava a grossa enchente.</l>
<l n="234">Tudo nos falta no país deserto.</l>
<l n="235">Tardar devia o espanhol socorro. [26]</l>
<l n="236">E de si nos lançava o rio e o tempo.</l>
<l n="237">Cedi, e retirei-me às nossas terras.</l>
<l n="238">Deu fim à narração o invicto Andrade</l>
<l n="239">E antes de se soltar o ajuntamento,</l>
<l n="240">Com os régios poderes, que ocultara,</l>
<l n="241">Surpreende os seus, e os ânimos alegra,</l>
<l n="242">Enchendo os postos todos do seu campo.</l>
<l n="243">O corpo de dragões a Almeida entrega,</l>
<l n="244">E Campo das Mercês o lugar chama.</l>
</lg>
</div>
<div type="poem" n="2">
<head>CANTO SEGUNDO</head>
<lg n="1">
<l n="1">Depois de haver marchado muitos dias</l>
<l n="2">Enfim junto a um ribeiro, que atravessa</l>
<l n="3">Sereno e manso um curvo e fresco vale,</l>
<l n="4">Acharam, os que o campo descobriram,</l>
<l n="5">Um cavalo anelante, e o peito e as ancas</l>
<l n="6">Coberto de suor e branca escuma.</l>
<l n="7">Temos perto o inimigo: aos seus dizia</l>
<l n="8">O esperto General: Sei que costumam</l>
<l n="9">Trazer os índios um volúvel laço,</l>
<l n="10">Com o qual tomam no espaçoso campo</l>
<l n="11">Os cavalos que encontram; e rendidos</l>
<l n="12">Aqui e ali com o continuado</l>
<l n="13">Galopear, a quem primeiro os segue</l>
<l n="14">Deixam os seus, que entanto se restauram.</l>
<l n="15">Nem se enganou; porque ao terceiro dia [27]</l>
<l n="16">Formados os achou sobre uma larga</l>
<l n="17">Ventajosa colina, que de um lado</l>
<l n="18">É coberta de um bosque e do outro lado</l>
<l n="19">Corre escarpada e sobranceira a um rio.</l>
<l n="20">Notava o General o sítio forte,</l>
<l n="21">Quando Meneses, que vizinho estava,</l>
<l n="22">Lhe diz: Nestes desertos encontramos</l>
<l n="23">Mais do que se esperava, e me parece</l>
<l n="24">Que só por força de armas poderemos</l>
<l n="25">Inteiramente sujeitar os povos.</l>
<l n="26">Torna-lhe o General: Tentem-se os meios</l>
<l n="27">De brandura e de amor; se isto não basta,</l>
<l n="28">Farei a meu pesar o último esforço.</l>
<l n="29">Mandou, dizendo assim, que os índios todos</l>
<l n="30">Que tinha prisioneiros no seu campo</l>
<l n="31">Fossem vestidos das formosas cores,</l>
<l n="32">Que a inculta gente simples tanto adora.</l>
<l n="33">Abraçou-os a todos, como filhos,</l>
<l n="34">E deu a todos liberdade. Alegres</l>
<l n="35">Vão buscar os parentes e os amigos,</l>
<l n="36">E a uns e a outros contam a grandeza</l>
<l n="37">Do excelso coração e peito nobre</l>
<l n="38">Do General famoso, invicto Andrade.</l>
<l n="39">Já para o nosso campo vêm descendo,</l>
<l n="40">Por mandado dos seus, dous dos mais nobres.</l>
<l n="41">Sem arcos, sem aljavas; mas as testas</l>
<l n="42">De várias e altas penas coroadas,</l>
<l n="43">E cercadas de penas as cinturas,</l>
<l n="44">E os pés, e os braços e o pescoço. Entrara</l>
<l n="45">Sem mostras nem sinal de cortesia</l>
<l n="46">Sepé no pavilhão. Porém Cacambo</l>
<l n="47">Fez, ao seu modo, cortesia estranha,</l>
<l n="48">E começou: Ó General famoso, [28]</l>
<l n="49">Tu tens à vista quanta gente bebe</l>
<l n="50">Do soberbo Uraguai a esquerda margem.</l>
<l n="51">Bem que os nossos avôs fossem despojo [29]</l>
<l n="52">Da perfídia de Europa, e daqui mesmo</l>
<l n="53">Co’s não vingados ossos dos parentes</l>
<l n="54">Se vejam branquejar ao longe os vales,</l>
<l n="55">Eu, desarmado e só, buscar-te venho. [30]</l>
<l n="56">Tanto espero de ti. E enquanto as armas [31]</l>
<l n="57">Dão lugar à razão, senhor, vejamos</l>
<l n="58">Se se pode salvar a vida e o sangue</l>
<l n="59">De tantos desgraçados. Muito tempo</l>
<l n="60">Pode ainda tardar-nos o recurso</l>
<l n="61">Com o largo oceano de permeio,</l>
<l n="62">Em que os suspiros dos vexados povos</l>
<l n="63">Perdem o alento. O dilatar-se a entrega</l>
<l n="64">Está nas nossas mãos, até que um dia</l>
<l n="65">Informados os reis nos restituam</l>
<l n="66">A doce antiga paz. Se o rei de Espanha</l>
<l n="67">Ao teu rei quer dar terras com mão larga</l>
<l n="68">Que lhe dê Buenos Aires, e Correntes</l>
<l n="69">E outras, que tem por estes vastos climas;</l>
<l n="70">Porém não pode dar-lhe os nossos povos.</l>
<l n="71">E inda no caso que pudesse dá-los,</l>
<l n="72">Eu não sei se o teu rei sabe o que troca</l>
<l n="73">Porém tenho receio que o não saiba.</l>
<l n="74">Eu já vi a Colônia portuguesa</l>
<l n="75">Na tenra idade dos primeiros anos,</l>
<l n="76">Quando o meu velho pai cos nossos arcos</l>
<l n="77">Às sitiadoras tropas castelhanas</l>
<l n="78">Deu socorro, e mediu convosco as armas.</l>
<l n="79">E quererão deixar os portugueses</l>
<l n="80">A praça, que avassala e que domina</l>
<l n="81">O gigante das águas, e com ela</l>
<l n="82">Toda a navegação do largo rio,</l>
<l n="83">Que parece que pôs a natureza</l>
<l n="84">Para servir-vos de limite e raia?</l>
<l n="85">Será; mas não o creio. E depois disto</l>
<l n="86">As campinas que vês e a nossa terra</l>
<l n="87">Sem o nosso suor e os nossos braços,</l>
<l n="88">De que serve ao teu rei? Aqui não temos [32]</l>
<l n="89">Nem altas minas, nem caudalosos</l>
<l n="90">Rios de areias de ouro. Essa riqueza [33]</l>
<l n="91">Que cobre os templos dos benditos padres,</l>
<l n="92">Fruto da sua indústria e do comércio</l>
<l n="93">Da folha e peles, é riqueza sua. [34]</l>
<l n="94">Com o arbítrio dos corpos e das almas</l>
<l n="95">O céu lha deu em sorte. A nós somente</l>
<l n="96">Nos toca arar e cultivar a terra,</l>
<l n="97">Sem outra paga mais que o repartido [35]</l>
<l n="98">Por mãos escassas mísero sustento.</l>
<l n="99">Podres choupanas, e algodões tecidos,</l>
<l n="100">E o arco, e as setas, e as vistosas penas</l>
<l n="101">São as nossas fantásticas riquezas.</l>
<l n="102">Muito suor, e pouco ou nenhum fasto. [36]</l>
<l n="103">Volta, senhor, não passes adiante.</l>
<l n="104">Que mais queres de nós? Não nos obrigues</l>
<l n="105">A resistir-te em campo aberto. Pode</l>
<l n="106">Custar-te muito sangue o dar um passo.</l>
<l n="107">Não queiras ver se cortam nossas frechas.</l>
<l n="108">Vê que o nome dos reis não nos assusta. [37]</l>
<l n="109">O teu está muito longe; e nós os índios</l>
<l n="110">Não temos outro rei mais do que os padres.</l>
<l n="111">Acabou de falar; e assim responde</l>
<l n="112">O ilustre General: Ó alma grande,</l>
<l n="113">Digna de combater por melhor causa,</l>
<l n="114">Vê que te enganam: risca da memória</l>
<l n="115">Vãs, funestas imagens, que alimentam</l>
<l n="116">Envelhecidos mal fundados ódios.</l>
<l n="117">Por mim te fala o rei: ouve-me, atende,</l>
<l n="118">E verás uma vez nua a verdade.</l>
<l n="119">Fez-vos livres o céu, mas se o ser livres</l>
<l n="120">Era viver errantes e dispersos,</l>
<l n="121">Sem companheiros, sem amigos, sempre</l>
<l n="122">Com as armas na mão em dura guerra,</l>
<l n="123">Ter por justiça a força, e pelos bosques</l>
<l n="124">Viver do acaso, eu julgo que inda fora</l>
<l n="125">Melhor a escravidão que a liberdade.</l>
<l n="126">Mas nem a escravidão, nem a miséria</l>
<l n="127">Quer o benigno rei que o fruto seja</l>
<l n="128">Da sua proteção. Esse absoluto</l>
<l n="129">Império ilimitado, que exercitam</l>
<l n="130">Em vós os padres, como vós, vassalos,</l>
<l n="131">É império tirânico, que usurpam.</l>
<l n="132">Nem são senhores, nem vós sois escravos.</l>
<l n="133">O rei é vosso pai: quer-vos felices.</l>
<l n="134">Sois livres, como eu sou; e sereis livres,</l>
<l n="135">Não sendo aqui, em outra qualquer parte.</l>
<l n="136">Mas deveis entregar-nos estas terras.</l>
<l n="137">Ao bem público cede o bem privado.</l>
<l n="138">O sossego de Europa assim o pede.</l>
<l n="139">Assim o manda o rei. Vós sois rebeldes,</l>
<l n="140">Se não obedeceis; mas os rebeldes,</l>
<l n="141">Eu sei que não sois vós, são os bons padres,</l>
<l n="142">Que vos dizem a todos que sois livres,</l>
<l n="143">E se servem de vós como de escravos.</l>
<l n="144">Armados de orações vos põem no campo</l>
<l n="145">Contra o fero trovão da artilheria,</l>
<l n="146">Que os muros arrebata; e se contentam</l>
<l n="147">De ver de longe a guerra: sacrificam,</l>
<l n="148">Avarentos do seu, o vosso sangue.</l>
<l n="149">Eu quero à vossa vista despojá-los</l>
<l n="150">Do tirano domínio destes climas,</l>
<l n="151">De que a vossa inocência os fez senhores.</l>
<l n="152">Dizem-vos que não tendes rei? Cacique,</l>
<l n="153">E o juramento de fidelidade?</l>
<l n="154">Porque está longe, julgas que não pode</l>
<l n="155">Castigar-vos a vós, e castigá-los?</l>
<l n="156">Generoso inimigo, é tudo engano.</l>
<l n="157">Os reis estão na Europa; mas adverte</l>
<l n="158">Que estes braços, que vês, são os seus braços.</l>
<l n="159">Dentro de pouco tempo um meu aceno</l>
<l n="160">Vai cobrir este monte e essas campinas</l>
<l n="161">De semivivos palpitantes corpos</l>
<l n="162">De míseros mortais, que inda não sabem</l>
<l n="163">Por que causa o seu sangue vai agora</l>
<l n="164">Lavar a terra e recolher-se em lagos.</l>
<l n="165">Não me chames cruel: enquanto é tempo</l>
<l n="166">Pensa e resolve, e, pela mão tomando</l>
<l n="167">Ao nobre embaixador, o ilustre Andrade</l>
<l n="168">Intenta reduzi-lo por brandura.</l>
<l n="169">E o índio, um pouco pensativo, o braço</l>
<l n="170">E a mão retira; e, suspirando, disse:</l>
<l n="171">Gentes de Europa, nunca vos trouxera</l>
<l n="172">O mar e o vento a nós. Ah! não debalde</l>
<l n="173">Estendeu entre nós a natureza</l>
<l n="174">Todo esse plano espaço imenso de águas.</l>
<l n="175">Prosseguia talvez; mas o interrompe</l>
<l n="176">Sepé, que entra no meio, e diz: Cacambo</l>
<l n="177">Fez mais do que devia; e todos sabem</l>
<l n="178">Que estas terras, que pisas, o céu livres [38]</l>
<l n="179">Deu aos nossos avôs; nós também livres</l>
<l n="180">As recebemos dos antepassados.</l>
<l n="181">Livres as hão de herdar os nossos filhos.</l>
<l n="182">Desconhecemos, detestamos jugo</l>
<l n="183">Que não seja o do céu, por mão dos padres. [39]</l>
<l n="184">As frechas partirão nossas contendas</l>
<l n="185">Dentro de pouco tempo: e o vosso Mundo,</l>
<l n="186">Se nele um resto houver de humanidade,</l>
<l n="187">Julgará entre nós; se defendemos</l>
<l n="188">Tu a injustiça, e nós o Deus e a Pátria.</l>
<l n="189">Enfim quereis a guerra, e tereis guerra.</l>
<l n="190">Lhe torna o General: Podeis partir-vos,</l>
<l n="191">Que tendes livre o passo. Assim dizendo,</l>
<l n="192">Manda dar a Cacambo rica espada</l>
<l n="193">De tortas guarnições de prata e ouro,</l>
<l n="194">A que inda mais valor dera o trabalho.</l>
<l n="195">Um bordado chapéu e larga cinta</l>
<l n="196">Verde, e capa de verde e fino pano,</l>
<l n="197">Com bandas amarelas e encarnadas.</l>
<l n="198">E mandou que a Sepé se desse um arco</l>
<l n="199">De pontas de marfim; e ornada e cheia</l>
<l n="200">De novas setas a famosa aljava:</l>
<l n="201">A mesma aljava que deixara um dia,</l>
<l n="202">Quando envolto em seu sangue, e vivo apenas,</l>
<l n="203">Sem arco e sem cavalo, foi trazido</l>
<l n="204">Prisioneiro de guerra ao nosso campo.</l>
<l n="205">Lembrou-se o índio da passada injúria</l>
<l n="206">E sobraçando a conhecida aljava</l>
<l n="207">Lhe disse: Ó General, eu te agradeço</l>
<l n="208">As setas que me dás e te prometo</l>
<l n="209">Mandar-tas bem depressa uma por uma</l>
<l n="210">Entre nuvens de pós no ardor da guerra.</l>
<l n="211">Tu as conhecerás pelas feridas,</l>
<l n="212">Ou porque rompem com mais força os ares.</l>
<l n="213">Despediram-se os índios, e as esquadras</l>
<l n="214">Se vão dispondo em ordem de peleja,</l>
<l n="215">Como mandava o General. Os lados</l>
<l n="216">Cobrem as tropas de cavaleria,</l>
<l n="217">E estão no centro firmes os infantes.</l>
<l n="218">Qual fera boca de libréu raivoso,</l>
<l n="219">De lisos e alvos dentes guarnecida,</l>
<l n="220">Os índios ameaça a nossa frente</l>
<l n="221">De agudas baionetas rodeada.</l>
<l n="222">Fez a trombeta o som da guerra. Ouviram</l>
<l n="223">Aqueles montes pela vez primeira</l>
<l n="224">O som da caixa portuguesa; e viram</l>
<l n="225">Pela primeira vez aqueles ares</l>
<l n="226">Desenroladas as reais bandeiras.</l>
<l n="227">Saem das grutas pelo chão cavadas,</l>
<l n="228">Em que até li de indústria se escondiam.</l>
<l n="229">Nuvens de índios, e a vista duvidava</l>
<l n="230">Se o terreno os bárbaros nasciam.</l>
<l n="231">Qual já no tempo antigo o errante Cadmo</l>
<l n="232">Dizem que vira da fecunda terra</l>
<l n="233">Brotar a cruelíssima seara.</l>
<l n="234">Erguem todos um bárbaro alarido,</l>
<l n="235">E sobre os nossos cada qual encurva</l>
<l n="236">Mil vezes, e mil vezes sota o arco,</l>
<l n="237">Um chuveiro de setas despedindo.</l>
<l n="238">Gentil mancebo presumido e néscio,</l>
<l n="239">A quem a popular lisonja engana,</l>
<l n="240">Vaidoso pelo campo discorria,</l>
<l n="241">Fazendo ostentação dos seus penachos.</l>
<l n="242">Impertinente e de família escura,</l>
<l n="243">Mas que tinha o favor dos santos padres,</l>
<l n="244">Contam, não sei se é certo, que o tivera</l>
<l n="245">A estéril mãe por orações de Balda. [40]</l>
<l n="246">Chamaram-no Baldetta por memória. [41]</l>
<l n="247">Tinha um cavalo de manchada pele</l>
<l n="248">Mais vistoso que forte: a natureza</l>
<l n="249">Um ameno jardim por todo o corpo</l>
<l n="250">Lhe debuxou, e era Jardim chamado.</l>
<l n="251">O padre na saudosa despedida</l>
<l n="252">Deu-lho em sinal de amor; e nele agora [42]</l>
<l n="253">Girando ao largo com incertos tiros</l>
<l n="254">Muitos feria, e a todos inquietava.</l>
<l n="255">Mas se então se cobriu de eterna infâmia,</l>
<l n="256">A glória tua foi, nobre Gerardo.</l>
<l n="257">Tornava o índio jactancioso, quando</l>
<l n="258">Lhe sai Gerardo ao meio da carreira:</l>
<l n="259">Disparou-lhe a pistola, e fez-lhe a um tempo</l>
<l n="260">Co’reflexo do sol luzir a espada.</l>
<l n="261">Só de vê-lo se assusta o índio, e fica</l>
<l n="262">Qual quem ouve o trovão e espera o raio.</l>
<l n="263">Treme, e o cavalo aos seus volta, e pendente</l>
<l n="264">A um lado e a outro de cair acena.</l>
<l n="265">Deixando aqui e ali por todo o campo</l>
<l n="266">Entornadas as setas; pelas costas,</l>
<l n="267">Flutuavam as penas; e fugindo</l>
<l n="268">Soltas da mão as rédeas ondeavam.</l>
<l n="269">Insta Gerardo, e quase o ferro o alcança,</l>
<l n="270">Quando Tatu Guaçú, o mais valente [43]</l>
<l n="271">De quantos índios viu a nossa idade,</l>
<l n="272">Armado o peito da escamosa pele</l>
<l n="273">De um jacaré disforme, que matara, [44]</l>
<l n="274">Se atravessa diante. Intenta o nosso</l>
<l n="275">Com a outra pistola abrir caminho,</l>
<l n="276">E em vão o intenta: a verde-negra pele,</l>
<l n="277">Que ao índio o largo peito orna e defende,</l>
<l n="278">Formou a natureza impenetrável.</l>
<l n="279">Co’a espada o fere no ombro e na cabeça</l>
<l n="280">E as penas corta, de que o campo espalha.</l>
<l n="281">Separa os dous fortíssimos guerreiros</l>
<l n="282">A multidão dos nossos, que atropela</l>
<l n="283">Os índios fugitivos: tão depressa [45]</l>
<l n="284">Cobrem o campo os mortos e os feridos,</l>
<l n="285">E por nós a vitória se declara.</l>
<l n="286">Precipitadamente as armas deixam,</l>
<l n="287">Nem resistem mais tempo às espingardas.</l>
<l n="288">Vale-lhe a costumada ligeireza,</l>
<l n="289">Debaixo lhe desaparece a terra</l>
<l n="290">E voam, que o temor aos pés põe asas,</l>
<l n="291">Clamando ao céu e encomendando a vida</l>
<l n="292">Às orações dos padres. Desta sorte</l>
<l n="293">Talvez, em outro clima, quando soltam</l>
<l n="294">A branca neve eterna os velhos Alpes,</l>
<l n="295">Arrebata a corrente impetuosa</l>
<l n="296">Co’as choupanas o gado. Aflito e triste</l>
<l n="297">Se salva o lavrador nos altos ramos,</l>
<l n="298">E vê levar-lhe a cheia os bois e o arado.</l>
<l n="299">Poucos índios no campo mais famosos,</l>
<l n="300">Servindo de reparo aos fugitivos,</l>
<l n="301">Sustentam todo o peso da batalha,</l>
<l n="302">Apesar da fortuna. De uma parte</l>
<l n="303">Tatu-Guaçu mais forte na desgraça</l>
<l n="304">Já banhado em seu sangue pertendia</l>
<l n="305">Por seu braço ele só pôr termo à guerra.</l>
<l n="306">Caitutu de outra parte altivo e forte</l>
<l n="307">Opunha o peito à fúria do inimigo,</l>
<l n="308">E servia de muro à sua gente.</l>
<l n="309">Fez proezas Sepé naquele dia.</l>
<l n="310">Conhecido de todos, no perigo</l>
<l n="311">Mostrava descoberto o rosto e o peito</l>
<l n="312">Forçando os seus co’ exemplo e co’as palavras.</l>
<l n="313">Já tinha despejado a aljava toda,</l>
<l n="314">E destro em atirar, e irado e forte</l>
<l n="315">Quantas setas da mão voar fazia</l>
<l n="316">Tantas na nossa gente ensangüentava.</l>
<l n="317">Setas de novo agora recebia,</l>
<l n="318">Para dar outra vez princípio à guerra.</l>
<l n="319">Quando o ilustre espanhol que governava</l>
<l n="320">Montevidio, alegre, airoso e pronto</l>
<l n="321">As rédeas volta ao rápido cavalo</l>
<l n="322">E por cima de mortos e feridos,</l>
<l n="323">Que lutavam co’a morte, o índio afronta.</l>
<l n="324">Sepé, que o viu, tinha tomado a lança</l>
<l n="325">E atrás deitando a um tempo o corpo e o braço</l>
<l n="326">A despediu. Por entre o braço e o corpo</l>
<l n="327">Ao ligeiro espanhol o ferro passa:</l>
<l n="328">Rompe, sem fazer dano, a terra dura</l>
<l n="329">E treme fora muito tempo a hástea.</l>
<l n="330">Mas de um golpe a Sepé na testa e peito</l>
<l n="331">Fere o governador, e as rédeas corta</l>
<l n="332">Ao cavalo feroz. Foge o cavalo,</l>
<l n="333">E leva involuntário e ardendo em ira</l>
<l n="334">Por todo o campo a seu senhor; e ou fosse</l>
<l n="335">Que regada de sangue aos pés cedia</l>
<l n="336">A terra, ou que pusesse as mãos em falso,</l>
<l n="337">Rodou sobre si mesmo, e na caída</l>
<l n="338">Lançou longe a Sepé. Rende-te, ou morre,</l>
<l n="339">Grita o governador; e o tape altivo,</l>
<l n="340">Sem responder, encurva o arco, e a seta</l>
<l n="341">Despede, e nela lhe prepara a morte.</l>
<l n="342">Enganou-se esta vez. A seta um pouco</l>
<l n="343">Declina, e açouta o rosto a leve pluma.</l>
<l n="344">Não quis deixar o vencimento incerto</l>
<l n="345">Por mais tempo o espanhol, e arrebatado</l>
<l n="346">Com a pistola lhe fez tiro aos peitos.</l>
<l n="347">Era pequeno o espaço, e fez o tiro</l>
<l n="348">No corpo desarmado estrago horrendo.</l>
<l n="349">Viam-se dentro pelas rotas costas</l>
<l n="350">Palpitar as entranhas. Quis três vezes</l>
<l n="351">Levantar-se do chão: caiu três vezes,</l>
<l n="352">E os olhos já nadando em fria morte</l>
<l n="353">Lhe cobriu sombra escura e férreo sono.</l>
<l n="354">Morto o grande Sepé, já não resistem</l>
<l n="355">As tímidas esquadras. Não conhece</l>
<l n="356">Leis o temor. Debalde está diante,</l>
<l n="357">E anima os seus o rápido Cacambo.</l>
<l n="358">Tinha-se retirado da peleja</l>
<l n="359">Caitutu mal ferido; e do seu corpo</l>
<l n="360">Deixa Tatu-Guaçu por onde passa</l>
<l n="361">Rios de sangue. Os outros mais valentes</l>
<l n="362">Ou eram mortos, ou feridos. Pende</l>
<l n="363">O ferro vencedor sobre os vencidos.</l>
<l n="364">Ao número, ao valor cede Cacambo:</l>
<l n="365">Salva os índios que pode, e se retira.</l>
</lg>
</div>
<div type="poem" n="3">
<head>CANTO TERCEIRO</head>
<lg n="1">
<l n="1">Já a nossa do mundo Última Parte</l>
<l n="2">Tinha voltado a ensangüentada fronte [46]</l>
<l n="3">Ao centro luminar quando a campanha</l>
<l n="4">Semeada de mortos e insepultos</l>
<l n="5">Viu desfazer-se a um tempo a vila errante</l>
<l n="6">Ao som das caixas. Descontente e triste</l>
<l n="7">Marchava o General: não sofre o peito</l>
<l n="8">Compadecido e generoso a vista</l>
<l n="9">Daqueles frios e sangrados corpos,</l>
<l n="10">Vítimas da ambição de injusto império.</l>
<l n="11">Foram ganhando e descobrindo terra</l>
<l n="12">Inimiga e infiel; até que um dia</l>
<l n="13">Fizeram alto e se acamparam onde</l>
<l n="14">Incultas várgeas, por espaço imenso,</l>
<l n="15">Enfadonhas e estéreis acompanham</l>
<l n="16">Ambas as margens de um profundo rio.</l>
<l n="17">Todas estas vastíssimas campinas</l>
<l n="18">Cobrem palustres e tecidas canas</l>
<l n="19">E leves juncos do calor tostados,</l>
<l n="20">Pronta matéria de voraz incêndio.</l>
<l n="21">O índio habitador de quando em quando</l>
<l n="22">Com estranha cultura entrega ao fogo;</l>
<l n="23">Muitas léguas de campo: o incêndio dura,</l>
<l n="24">Enquanto dura e o favorece o vento.</l>
<l n="25">Da erva, que renasce, se apascenta</l>
<l n="26">O imenso gado, que dos montes desce;</l>
<l n="27">E renovando incêndios desta sorte</l>
<l n="28">A Arte emenda a Natureza, e podem</l>
<l n="29">Ter sempre nédio o gado, e o campo verde.</l>
<l n="30">Mas agora sabendo por espias</l>
<l n="31">As nossas marchas, conservavam sempre</l>
<l n="32">Secas as torradíssimas campinas;</l>
<l n="33">Nem consentiam, por fazer-nos guerra,</l>
<l n="34">Que a chama benfeitora e a cinza fria</l>
<l n="35">Fertilizasse o árido terreno.</l>
<l n="36">O cavalo até li forte e brioso,</l>
<l n="37">E costumado a não ter mais sustento,</l>
<l n="38">Naqueles climas, do que a verde relva</l>
<l n="39">Da mimosa campina, desfalece.</l>
<l n="40">Nem mais, se o seu senhor o afaga, encurva</l>
<l n="41">Os pés, e cava o chão co’as mãos, e o vale</l>
<l n="42">Rinchando atroa, e açouta o ar co’as clinas.</l>
<l n="43">Era alta noite, e carrancudo e triste</l>
<l n="44">Negava o céu envolto em pobre manto</l>
<l n="45">A luz ao mundo, e murmurar se ouvia</l>
<l n="46">Ao longe o rio, e menear-se o vento.</l>
<l n="47">Respirava descanso a natureza.</l>
<l n="48">Só na outra margem não podia entanto</l>
<l n="49">O inquieto Cacambo achar sossego.</l>
<l n="50">No perturbado interrompido sono</l>
<l n="51">(Talvez fosse ilusão) se lhe apresenta</l>
<l n="52">A triste imagem de Sepé despido,</l>
<l n="53">Pintado o rosto do temor da morte,</l>
<l n="54">Banhado em negro sangue, que corria</l>
<l n="55">Do peito aberto, e nos pisados braços</l>
<l n="56">Inda os sinais da mísera caída.</l>
<l n="57">Sem adorno a cabeça, e aos pés calcada</l>
<l n="58">A rota aljava e as descompostas penas.</l>
<l n="59">Quanto diverso do Sepé valente,</l>
<l n="60">Que no meio dos nossos espalhava,</l>
<l n="61">De pó, de sangue e de suor coberto,</l>
<l n="62">O espanto, a morte! E diz-lhe em tristes vozes:</l>
<l n="63">Foge, foge, Cacambo. E tu descansas,</l>
<l n="64">Tendo tão perto os inimigos? Torna,</l>
<l n="65">Torna aos teus bosques, e nas pátrias grutas</l>
<l n="66">Tua fraqueza e desventura encobre.</l>
<l n="67">Ou, se acaso inda vivem no teu peito</l>
<l n="68">Os desejos de glória, ao duro passo</l>
<l n="69">Resiste valeroso; ah tu, que podes!</l>
<l n="70">E tu, que podes, põe a mão nos peitos</l>
<l n="71">À fortuna de Europa: agora é tempo,</l>
<l n="72">Que descuidados da outra parte dormem.</l>
<l n="73">Envolve em fogo e fumo o campo, e paguem</l>
<l n="74">O teu sangue e o meu sangue. Assim dizendo</l>
<l n="75">Se perdeu entre as nuvens, sacudindo</l>
<l n="76">Sobre as tendas, no ar, fumante tocha;</l>
<l n="77">E assinala com chamas o caminho.</l>
<l n="78">Acorda o índio valeroso, e salta</l>
<l n="79">Longe da curva rede, e sem demora</l>
<l n="80">O arco e as setas arrebata, e fere</l>
<l n="81">O chão com o pé: quer sobre o largo rio</l>
<l n="82">Ir peito a peito a contrastar co’a morte.</l>
<l n="83">Tem diante dos olhos a figura</l>
<l n="84">Do caro amigo, e inda lhe escuta as vozes.</l>
<l n="85">Pendura a um verde tronco as várias penas,</l>
<l n="86">E o arco, e as setas, e a sonora aljava;</l>
<l n="87">E onde mais manso e mais quieto o rio</l>
<l n="88">Se estende e espraia sobre a ruiva areia</l>
<l n="89">Pensativo e turbado entra; e com água</l>
<l n="90">Já por cima do peito as mãos e os olhos</l>
<l n="91">Levanta ao céu, que ele não via, e às ondas</l>
<l n="92">O corpo entrega. Já sabia entanto</l>
<l n="93">A nova empresa na limosa gruta</l>
<l n="94">O pátrio rio; e dando um jeito à urna</l>
<l n="95">Fez que as águas corressem mais serenas;</l>
<l n="96">E o índio afortunado a praia oposta</l>
<l n="97">Tocou sem ser sentido. Aqui se aparta</l>
<l n="98">Da margem guarnecida e mansamente</l>
<l n="99">Pelo silêncio vai da noite escura</l>
<l n="100">Buscando a parte donde vinha o vento.</l>
<l n="101">Lá, como é uso do país, roçando</l>
<l n="102">Dous lenhos entre si, desperta a chama,</l>
<l n="103">Que já se ateia nas ligeiras palhas,</l>
<l n="104">E velozmente se propaga. Ao vento</l>
<l n="105">Deixa Cacambo o resto e foge a tempo</l>
<l n="106">Da perigosa luz; porém na margem</l>
<l n="107">Do rio, quando a chama abrasadora</l>
<l n="108">Começa a alumiar a noite escura,</l>
<l n="109">Já sentido dos guardas não se assusta</l>
<l n="110">E temerária e venturosamente,</l>
<l n="111">Fiando a vida aos animosos braços,</l>
<l n="112">De um alto precipício às negras ondas</l>
<l n="113">Outra vez se lançou e foi de um salto</l>
<l n="114">Ao fundo rio a visitar a areia.</l>
<l n="115">Debalde gritam, e debalde às margens</l>
<l n="116">Corre a gente apressada. Ele entretanto</l>
<l n="117">Sacode as pernas e os nervosos braços:</l>
<l n="118">Rompe as escumas assoprando, e a um tempo</l>
<l n="119">Suspendido nas mãos, voltando o rosto,</l>
<l n="120">Via nas águas trêmulas a imagem</l>
<l n="121">Do arrebatado incêndio, e se alegrava...</l>
<l n="122">Não de outra sorte o cauteloso Ulisses,</l>
<l n="123">Vaidoso da ruína, que causara,</l>
<l n="124">Viu abrasar de Tróia os altos muros,</l>
<l n="125">E a perjura cidade envolta em fumo</l>
<l n="126">Encostar-se no chão e pouco a pouco</l>
<l n="127">Desmaiar sobre as cinzas. Cresce entanto</l>
<l n="128">O incêndio furioso, e o irado vento</l>
<l n="129">Arrebata às mãos cheias vivas chamas,</l>
<l n="130">Que aqui e ali pela campina espalha.</l>
<l n="131">Comunica-se a um tempo ao largo campo</l>
<l n="132">A chama abrasadora e em breve espaço</l>
<l n="133">Cerca as barracas da confusa gente.</l>
<l n="134">Armado o General, como se achava,</l>
<l n="135">Saiu do pavilhão e pronto atalha,</l>
<l n="136">Que não prossiga o voador incêndio.</l>
<l n="137">Poucas tendas entrega ao fogo e manda,</l>
<l n="138">Sem mais demora, abrir largo caminho</l>
<l n="139">Que os separe das chamas. Uns já cortam</l>
<l n="140">As combustíveis palhas, outros trazem</l>
<l n="141">Nos prontos vasos as vizinhas ondas.</l>
<l n="142">Mas não espera o bárbaro atrevido.</l>
<l n="143">A todos se adianta; e desejoso</l>
<l n="144">De levar a notícia ao grande Balda</l>
<l n="145">Naquela mesma noite o passo estende.</l>
<l n="146">Tanto se apressa que na quarta aurora</l>
<l n="147">Por veredas ocultas viu de longe</l>
<l n="148">A doce pátria, e os conhecidos montes,</l>
<l n="149">E o templo, que tocava o céu co’as grimpas.</l>
<l n="150">Mas não sabia que a fortuna entanto</l>
<l n="151">Lhe preparava a última ruína.</l>
<l n="152">Quanto seria mais ditoso! Quanto</l>
<l n="153">Melhor lhe fora o acabar a vida</l>
<l n="154">Na frente do inimigo, em campo aberto,</l>
<l n="155">Ou sobre os restos de abrasadas tendas,</l>
<l n="156">Obra do seu valor! Tinha Cacambo</l>
<l n="157">Real esposa, a senhoril Lindóia,</l>
<l n="158">De costumes suavíssimos e honestos,</l>
<l n="159">Em verdes anos: com ditosos laços</l>
<l n="160">Amor os tinha unido; mas apenas</l>
<l n="161">Os tinha unido, quando ao som primeiro</l>
<l n="162">Das trombetas lho arrebatou dos braços</l>
<l n="163">A glória enganadora. Ou foi que Balda,</l>
<l n="164">Engenhoso e sutil, quis desfazer-se</l>
<l n="165">Da presença importuna e perigosa</l>
<l n="166">Do índio generoso; e desde aquela</l>
<l n="167">Saudosa manhã, que a despedida</l>
<l n="168">Presenciou dos dous amantes, nunca</l>
<l n="169">Consentiu que outra vez tornasse aos braços</l>
<l n="170">Da formosa Lindóia e descobria</l>
<l n="171">Sempre novos pretextos da demora.</l>
<l n="172">Tornar não esperado e vitorioso</l>
<l n="173">Foi todo o seu delito. Não consente</l>
<l n="174">O cauteloso Balda que Lindóia</l>
<l n="175">Chegue a falar ao seu esposo; e manda</l>
<l n="176">Que uma escura prisão o esconda e aparte</l>
<l n="177">Da luz do sol. Nem os reais parentes,</l>
<l n="178">Nem dos amigos a piedade, e o pranto</l>
<l n="179">Da enternecida esposa abranda o peito</l>
<l n="180">Do obstinado juiz: até que à força</l>
<l n="181">De desgostos, de mágoa e de saudade,</l>
<l n="182">Por meio de um licor desconhecido, [47]</l>
<l n="183">Que lhe deu compassivo o santo padre,</l>
<l n="184">Jaz o ilustre Cacambo - entre os gentios</l>
<l n="185">Único que na paz e em dura guerra</l>
<l n="186">De virtude e valor deu claro exemplo.</l>
<l n="187">Chorado ocultamente e sem as honras</l>
<l n="188">De régio funeral, desconhecida</l>
<l n="189">Pouca terra os honrados ossos cobre.</l>
<l n="190">Se é que os seus ossos cobre alguma terra.</l>
<l n="191">Cruéis ministros, encobri ao menos</l>
<l n="192">A funesta notícia. Ai que já sabe</l>
<l n="193">A assustada amantíssima Lindóia</l>
<l n="194">O sucesso infeliz. Quem a socorre!</l>
<l n="195">Que aborrecida de viver procura</l>
<l n="196">Todos os meios de encontrar a morte.</l>
<l n="197">Nem quer que o esposo longamente a espere</l>
<l n="198">No reino escuro, aonde se não ama.</l>
<l n="199">Mas a enrugada Tanajura, que era</l>
<l n="200">Prudente e exprimentada (e que a seus peitos</l>
<l n="201">Tinha criado em mais ditosa idade</l>
<l n="202">A mãe da mãe da mísera Lindóia),</l>
<l n="203">E lia pela história do futuro,</l>
<l n="204">Visionária, supersticiosa, [48]</l>
<l n="205">Que de abertos sepulcros recolhia</l>
<l n="206">Nuas caveiras e esburgados ossos,</l>
<l n="207">A uma medonha gruta, onde ardem sempre</l>
<l n="208">Verdes candeias, conduziu chorando</l>
<l n="209">Lindóia, a quem amava como filha;</l>
<l n="210">E em ferrugento vaso licor puro</l>
<l n="211">De viva fonte recolheu. Três vezes</l>
<l n="212">Girou em roda, e murmurou três vezes</l>
<l n="213">Co’a carcomida boca ímpias palavras,</l>
<l n="214">E as águas assoprou: depois com o dedo</l>
<l n="215">Lhe impõe silêncio e faz que as águas note.</l>
<l n="216">Como no mar azul, quando recolhe</l>
<l n="217">A lisonjeira viração as asas,</l>
<l n="218">Adormecem as ondas e retratam</l>
<l n="219">Ao natural as debruçadas penhas,</l>
<l n="220">O copado arvoredo e as nuvens altas:</l>
<l n="221">Não de outra sorte à tímida Lindóia</l>
<l n="222">Aquelas águas fielmente pintam</l>
<l n="223">O rio, a praia o vale e os montes onde</l>
<l n="224">Tinha sido Lisboa; e viu Lisboa [49]</l>
<l n="225">Entre despedaçados edifícios,</l>
<l n="226">Com o solto cabelo descomposto,</l>
<l n="227">Tropeçando em ruínas encostar-se.</l>
<l n="228">Desamparada dos habitadores</l>
<l n="229">A Rainha do Tejo, e solitária,</l>
<l n="230">No meio de sepulcros procurava</l>
<l n="231">Com seus olhos socorro; e com seus olhos</l>
<l n="232">Só descobria de um e de outro lado</l>
<l n="233">Pendentes muros e inclinadas torres.</l>
<l n="234">Vê mais o Luso Atlante, que forceja</l>
<l n="235">Por sustentar o peso desmedido</l>
<l n="236">Nos roxos ombros. Mas do céu sereno</l>
<l n="237">Em branca nuvem Próvida Donzela</l>
<l n="238">Rapidamente desce e lhe apresenta,</l>
<l n="239">De sua mão, Espírito Constante,</l>
<l n="240">Gênio de Alcides, que de negros monstros</l>
<l n="241">Despeja o mundo e enxuga o pranto à pátria.</l>
<l n="242">Tem por despojos cabeludas peles</l>
<l n="243">De ensangüentados e famintos lobos</l>
<l n="244">E fingidas raposas. Manda, e logo [50]</l>
<l n="245">O incêndio lhe obedece; e de repente</l>
<l n="246">Por onde quer que ele encaminha os passos</l>
<l n="247">Dão lugar as ruínas. Viu Lindóia [51]</l>
<l n="248">Do meio delas, só a um seu aceno,</l>
<l n="249">Sair da terra feitos e acabados [52]</l>
<l n="250">Vistosos edifícios. Já mais bela</l>
<l n="251">Nasce Lisboa de entre as cinzas - glória</l>
<l n="252">Do grande conde, que co’a mão robusta</l>
<l n="253">Lhe firmou na alta testa os vacilantes</l>
<l n="254">Mal seguros castelos. Mais ao longe</l>
<l n="255">Prontas no Tejo, e ao curvo ferro atadas [53]</l>
<l n="256">Aos olhos dão de si terrível mostra,</l>
<l n="257">Ameaçando o mar, as poderosas</l>
<l n="258">Soberbas naus. Por entre as cordas negras</l>
<l n="259">Alvejam as bandeiras: geme atado</l>
<l n="260">Na popa o vento; e alegres e vistosas</l>
<l n="261">Descem das nuvens a beijar os mares</l>
<l n="262">As flâmulas guerreiras. No horizonte</l>
<l n="263">Já sobre o mar azul aparecia</l>
<l n="264">A pintada Serpente, obra e trabalho [54]</l>
<l n="265">Do Novo Mundo, que de longe vinha</l>
<l n="266">Buscar as nadadoras companheiras</l>
<l n="267">E já de longe a fresca Sintra e os montes,</l>
<l n="268">Que inda não conhecia, saudava.</l>
<l n="269">Impacientes da fatal demora</l>
<l n="270">Os lenhos mercenários junto à terra</l>
<l n="271">Recebem no seu seio e a outros climas,</l>
<l n="272">Longe dos doces ares de Lisboa,</l>
<l n="273">Transportam a Ignorância e a magra Inveja, [55]</l>
<l n="274">E envolta em negros e compridos panos</l>
<l n="275">A Discórdia, o Furor. A torpe e velha</l>
<l n="276">Hipocrisia vagarosamente</l>
<l n="277">Atrás deles caminha; e inda duvida</l>
<l n="278">Que houvesse mão que se atrevesse a tanto.</l>
<l n="279">O povo a mostra com o dedo; e ela,</l>
<l n="280">Com os olhos no chão, da luz do dia</l>
<l n="281">Foge, e cobrir o rosto inda procura</l>
<l n="282">Com os pedaços do rasgado manto.</l>
<l n="283">Vai, filha da ambição, onde te levam</l>
<l n="284">O vento e os mares: possam teus alunos</l>
<l n="285">Andar errando sobre as águas; possa</l>
<l n="286">Negar-lhe a bela Europa abrigo e porto.</l>
<l n="287">Alegre deixarei a luz do dia,</l>
<l n="288">Se chegarem a ver meus olhos que Adria [56]</l>
<l n="289">Da alta injúria se lembra e do seu seio</l>
<l n="290">Te lança - e que te lançam do seu seio</l>
<l n="291">Galia, Iberia e o país belo que parte [57]</l>
<l n="292">O Apenino, e cinge o mar e os Alpes.</l>
<l n="293">Pareceu a Lindóia que a partida</l>
<l n="294">Destes monstros deixava mais serenos</l>
<l n="295">E mais puros os ares. Já se mostra</l>
<l n="296">Mais distinta a seus olhos a cidade.</l>
<l n="297">Mas viu, ai vista lastimosa! a um lado</l>
<l n="298">Ir a fidelidade portuguesa,</l>
<l n="299">Manchados os puríssimos vestidos</l>
<l n="300">De roxas nódoas. Mais ao longe estava</l>
<l n="301">Com os olhos vendados, e escondido</l>
<l n="302">Nas roupas um punhal banhado em sangue,</l>
<l n="303">O Fanatismo, pela mão guiando</l>
<l n="304">Um curvo e branco velho ao fogo e ao laço. [58]</l>
<l n="305">Geme ofendida a Natureza; e geme</l>
<l n="306">Ai! Muito tarde, a crédula cidade.</l>
<l n="307">Os olhos põe no chão a Igreja irada [59]</l>
<l n="308">E desconhece, e desaprova, e vinga</l>
<l n="309">O delito cruel e a mão bastarda.</l>
<l n="310">Embebida na mágica pintura</l>
<l n="311">Goza as imagens vãs e não se atreve</l>
<l n="312">Lindóia a perguntar. Vê destruída</l>
<l n="313">A República infame, e bem vingada</l>
<l n="314">A morte de Cacambo. E atenta e imóvel</l>
<l n="315">Apascentava os olhos e o desejo,</l>
<l n="316">E nem tudo entendia, quando a velha</l>
<l n="317">Bateu co’a mão e fez tremer as águas.</l>
<l n="318">Desaparecem as fingidas torres</l>
<l n="319">E os verdes campos; nem já deles resta</l>
<l n="320">Leve sinal. Debalde os olhos buscam</l>
<l n="321">As naus: já não são naus, nem mar, nem montes,</l>
<l n="322">Nem o lugar onde estiveram. Torna</l>
<l n="323">Ao pranto a saudosíssima Lindóia</l>
<l n="324">E de novo outra vez suspira e geme.</l>
<l n="325">Até que a noite compassiva e atenta,</l>
<l n="326">Que as magoadas lástimas lhe ouvira,</l>
<l n="327">Ao partir sacudiu das fuscas asas,</l>
<l n="328">Envolto em frio orvalho, um leve sono,</l>
<l n="329">Suave esquecimento de seus males.</l>
</lg>
</div>
<div type="poem" n="4">
<head>CANTO QUARTO</head>
<lg n="1">
<l n="1">Salvas as tropas do noturno incêndio,</l>
<l n="2">Aos povos se avizinha o grande Andrade,</l>
<l n="3">Depois de afugentar os índios fortes</l>
<l n="4">Que a subida dos montes defendiam,</l>
<l n="5">E rotos muitas vezes e espalhados</l>
<l n="6">Os tapes cavaleiros, que arremessam</l>
<l n="7">Duas causas de morte em uma lança</l>
<l n="8">E em largo giro todo o campo escrevem.</l>
<l n="9">Que negue agora a pérfida calúnia [60]</l>
<l n="10">Que se ensinava aos bárbaros gentios</l>
<l n="11">A disciplina militar, e negue</l>
<l n="12">Que mãos traidoras a distantes povos</l>
<l n="13">Por ásperos desertos conduziam</l>
<l n="14">O pó sulfúreo, e as sibilantes balas</l>
<l n="15">E o bronze, que rugia nos seus muros.</l>
<l n="16">Tu que viste e pisaste, ó Blasco insigne, [61]</l>
<l n="17">Todo aquele país, tu só pudeste,</l>
<l n="18">Co’a mão que dirigia o ataque horrendo</l>
<l n="19">E aplanava os caminhos à vitória,</l>
<l n="20">Descrever ao teu rei o sítio e as armas,</l>
<l n="21">E os ódios, e o furor, e a incrível guerra.</l>
<l n="22">Pisaram finalmente os altos riscos</l>
<l n="23">De escalvada montanha, que os infernos</l>
<l n="24">Co’o peso oprime e a testa altiva esconde</l>
<l n="25">Na região que não perturba o vento.</l>
<l n="26">Qual vê quem foge à terra pouco a pouco</l>